2012-11-12
alexandre gonçalves - palmela
A R O D A D O F O GO`
Às nove horas matinais, ainda chovia. Mas quando, um pouco depois, chegou o primeiro grupo, o sol estendeu uma passadeira de oiro, que abriu de par em par a alameda de entrada. O S. Martinho é guloso destes momentos e oferece a sua cumplicidade a todos os que se empenharem num encontro tão outonal e tão sereno como este. Há já comentadores bastantes para, com talento e humor, esmiuçar o esplendor das libações e anexos. Resumo tudo numa palavra: irrepreensível. Trabalho de geral participação de todos os presentes. Ninguém foi surpreendido de mãos caídas, a servir-se de serviços alheios. Comemos e bebemos com a mais cristã das alegrias. Por fim, com as vozes temperadas a gosto, soltámos pelos silêncios de Palmela harmonias musicais inéditas, que muito soltaram os corações e os sentidos. E ensaiou-se em ante-estreia a nova versão do hino da Palmeira, em vernáculo transparente e foneticamente rigoroso.
Porém, a grande surpresa estava guardada para a hora do crepúsculo, um pouco antes de a noite pousar, pesada de frio e de mistério, sobre os campos em repouso. Acendemos então duas fogueiras. Uma tão efémera quanto a chama breve de espécies arbustivas já secas. Foi aí que as castanhas se mostraram tão doces e tão antigas como a nossa infância. Se quiséssemos, valia tudo, segundo a tradição. Mas não quisemos. Passámos à segunda fogueira, a roda de fogo, tão perene como o lume dos nossos antepassados. Tão quente quanto o suportável. A chama ergueu-se à altura das árvores. Os troncos incandescentes iluminaram a noite imediata. Criou-se uma atmosfera de regresso a uma idade pré-histórica. Uma tribo inteira eleva até à transcendência o mistério arcaico do fogo. À luz da chama ondulante, os rostos concentram-se numa fala intimista. Apetecia que fosse longa aquela hora. A palavra circulou em conformidade com este intimismo, sob o manto maternal da noite e do fogo. O espírito, que estava latente ao corpo e à alma, libertou-se da obscuridade e fez-se voz. Qualquer coisa se comoveu em qualquer lado da nossa memória e tudo foi suave nas palavras que, de mão em mão, passaram quentes e verdadeiras no círculo de meia-luz, que as brasas definiam.
Como tudo o que é belo, houve um começo, um meio e um fim. O fim foi um abraço de novo tipo, sem convenções nem cortesia, mas intenso e duradoiro. Feitas as promessas de novas edições, os cavalos acendaram-se e em poucos minutos um silêncio de ausência cobriu pesadamente o que restava da noite.