2013-02-03
A. Martins Ribeiro - Terras de Valdevez
Estive, na verdade, com uma virulenta gripe que me levou á cama e me pôs o corpo num feixe. Bem, afinal não passava duma simples gripe que apenas me bateu forte e feio. E é para vos dizer que, felizmente, já me encontro em plena forma, quiçá mais limpo de miasmas latentes. Houve alguns companheiros que se chegaram a preocupar com esta coisa: neste sítio, o Vieira, o Alexandre, o Arsénio, o Peinado por telefone e por eMail o Assis porque também sofreu na pela o contágio do virus apanhado nas terras do conde Drácula e do qual, pelos vistos, ainda restam pequenas sequelas. A todos estou a agradecer e vos digo que, ás vezes, há males que vêm por bem pois, enquanto curtia na cama as sezões malígnas fui pondo os neurónios a trabalhar e, no fim, surgiu este trecho que vos mando e com que vos vou maçar:
ODE Á VIDA
Sei que já fiz muitos anos,
Que, como dizem, já sou velho, ranhoso e desvalido,
Sei que devo ter cuidado; disso tudo não duvido.
Ah! Mas também sei que devo procurar viver sem desenganos.
Que se não deve parar nem desistir, vergado ao desalento!
Os anos não contam, alguém mo disse e não invento
O que conta é o estado da carcassa que nos mantém o coiro.
Por isso, deito p'ra trás das costas os conceitos estafados
De que sendo velhos devemos renunciar á vida, resignados.
E que me importa a mim estar carregado de anos?
Que me interessa o tempo que já por mim passou?
O que me interessa é viver, buscar outros desejos, congeminar planos.
Corri então caminhos, palmilhei veredas, atravessei rios, alisei outeiros,
Subi montanhas, saltei pélagos, visitei infernos
Só p'ra conseguir formas de não cair vencido em lamaçais parados.
E encontrei amigos, ranchos deles, tunantes, prazenteiros:
Comi com eles manjares suculentos, requintados,
Com eles libei á glória, em tragos de vinhos quentes e bravios,
No meio deles berrei cantos profanos e entoei canções de amor,
Recitei poemas, cantei salmos e fui rindo com desbrago e sem pudor.:
E vivi.
Depois, deparei na grande fonte da existência, o Amor fatal:
Corri como um rapaz estouvado a ver se ainda era capaz de lá beber,
E o amor aconteceu ainda, mesmo ali á mão,
Intenso e fogoso como outrora, igual,
Com uma Rosa carente de seiva que se abriu para mim:
Agitei-lhe as pétalas, sorvi-lhe o perfume, matei o desejo e pequei:
Sacrílego pecado, sortílego fascínio, contentamento sem fim
Pois ele era própria Vida!
Uma labareda de fogo aqueceu-me o vigor da alma de seguida,
Varreu-me do acordo o peso dos anos já passados,
Jogou-me nas paragens do rapaz antigo que já fora,
Exultei de regozijo porque fui capaz ainda de beber sem travos.
E daí, em certa altura, chegou-se a mim um Mensageiro do Céu:
Entre recriminações, ameaças e censuras, montando cariz feio
Alertou-me para as loucuras descabidas que operava no meu seio:
"… viandante, olha o Céu ali perto á tua espera
Refreia tais desvarios que o teu tempo já não é o que era."
Ouviu-se um horrissonante estrondo ecoando pela nossa posição,
Podendo ver as grossas, maciças e imponentes portas do Céu
A abrir-se lentamente num convite para entrar com decisão:
" …Mensageiro, há vida para além daquelas portas?"
Volveu ele, indeciso: " … não me é permitido informar-te."
"Mensageiro: diz então ao Senhor nosso que o Céu pode esperar;
Vou parar aqui um pouco, suster a minha caminhada e descansar,
Vou continuar no rebuliço dos amigos a comer e a beber mais,
Vou cantar ainda com eles melodias e recitar madrigais,
Vou-me empanturrar de amor, vou novamente pecar.
Mas vai-te embora!
Volta algum tempo depois, quando te for bater á porta,
Que enquanto sentir vida em mim a bulir ao meu redor,
Enquanto a não consumir toda, enquanto a não gastar,
Deixa-me consumi-la, saboreá-la, olhar o seu esplendor,
Que eu recuso-me a entrar."
O Mensageiro anuiu, meneou a cabeça e sumiu-se.
Mas sei que em outro dia há-de voltar.