2020-02-27
alexandre gonçalves - palmela
A SEDUÇÃO DO PRETEXTO
A idade vai-nos tornando testemunhas abundantes e atentas. Estávamos lá, quando setembro concluíu o verão à sua maneira. Sem qualquer pudor, remeteu-nos à nossa casa de origem e à sua melancólica outonalidade. Nem isso a fortuna deixa durar muito. Na sua vertigem acelerada, o tempo abriu-nos um inverno húmido e abstrato, onde nos sequestrou numa abastada quarentena. Enfim, março à vista! Alegra-te, coração! Não precisas de argumentos nem de qualquer mecanismo de utilidade. Pega nas pernas e anda. É num quintal aqui perto.
Dizem os que sabem, a lampreia bem nutrida justifica os quilómetros que forem necessários. Mas aí é que está o equívoco. Até podemos acrescentar o tal coração de boi, o "BINHÃO", que até aos mortos dá vida e faz regressar os velhos à melhor juventude. Mas isso ainda seria muito abstrato, muito cálculo. S. Frutuoso é um restaurante em forma de útero, maternal, com uma suave curva feminina. Tem cerca de quarenta anos de exercício, sempre nas mãos delicadas da Maria Argentina. Claro, há também os apoios sensíveis do Zé, aquele actor americano dos anos cinquenta ou noventa, que até publica versos de nós bem conhecidos. E há ainda o sorriso paciente e minhoto do cunhado. Este trio faz milagres de bacalhau, de arroz-pica-no-chão e outras iguarias da indiscutível cozinha do Minho. Estes sabores familiares remetem-nos logo para emoções já recuadas. Mas o que nos faz correr é apenas o pretexto de um abraço, de uma palavra genuína, de um tempo que volta sempre, com alvoroço de alegria. Em nós, as coisas começam a ser últimas. É imperioso impedi-las de o serem. Em Braga ou em Alguidares de Baixo, nós gostamos de nos vermos. E em S. Frutuoso, tudo ajuda a gostarmos um pouco mais. O desenho da sala lembra antigas funções, como a de vender vinho em tigelinhas, passando algum tempo depois a mercearia de bairro, abastecendo as populações dos mais diversos produtos domésticos. Mas há quarenta anos, estes três mosqueteiros viram ali uma fonte de ouro, trabalhando muito, amando muito, e às vezes gerindo com muita prudência ameaças e perigos. E os dois varões e as respectivas donzelas nem sequer se esqueceram de procriar oportunamente, aumentando o tamanho da família com quatro herdeiros, agora já voando por conta própria.
E por falar em pássaros, uma palavra para o referido actor, cujo currículo dava provavelmente um bom livro. O menino estreou-se na vida na Torre de Dona Chama, a meio caminho entre Macedo e Valpaços. Como todos os que em Vila Nova se abasteciam de futuro, também ele era pobre de nascença e foi em vão que pediu aos deuses o salvassem do mal que ali havia. O Zé não era cousa que se amestrasse naquele viveiro. Quatrocentos dias depois, sem lei que o proteja do trabalho infantil, arranja o primeiro emprego na terra que o viu nascer e onde a mãe ainda o vê derreter a infância, sem futuro que se veja. Obriga-o então a estudar qualquer coisa, para não repetir a fatal sina do nascimento. A escola comercial também não é o seu lugar preferido. É altura para imaginarmos coisas mais suculentas do que os livros. Aos dezasseis já não é o menino da sua mãe. Angola espera-o e abraça-o até abril. Regressa a tempo de outro emprego e Braga abre-lhe agora a sua oportunidade. Abril abriu festas e esperanças nunca vistas. E mostrou-lhe os vinte e cinco anos de uma jovem que por ali passava. Depois já não passa. Gere com brio uma caixa de comércio. É só entrar, olhar e esperar. Ambos sabem que é assim. E é assim que se sabe de uma velha mercearia, já exausta, que pede forças novas para servir o bairro e, por que não?, uma cidade. Os três mosqueteiros, belos, jovens e habituados à vida inventam o "S. Frutuoso". O nome é tirado de um vizinho, um badameco celestial e galego, pré-lusitano, que pelo Séc.VII consegue ali algum prestígio de bispo, com alguma influência popular. Isso deu-lhe direito a uma capela da mesma data, de características visigóticas, que desafia o tempo e a memória dos curiosos. Porém, é preciso registar que entre os dois santuários, referenciados com o mesmo nome, não há qualquer risco de confusão. Um é habitado, tem qualquer coisa de uterino e dá ternura a comer. O outro é obscuro, gelado e guarda uns ossinhos tenebrosos. Alguém tem dúvidas? Só há uma resposta:
apareçam no dia 7 de março de 2020 para as tirar.