2020-06-20
alexandre gonçalves - palmela
Meu Caro Aventino
Não resisto a tanta provocação. Tens pedalada para acordar um morto. No caso, o morto era eu. A noite de junho cai incerta e quase fria em palmela. Os cães dormem serenamente, como se não houvesse guerra no fim da rua. As casuarinas são testemunhas tristes de um verão iminente, que nunca deu mas prometia. Agora também não dá mas, pior que isso, nem promete. O silêncio nivela o mundo num confinamento de medo e solidão. No chão da memória, um a um, vão caindo os nomes que moravam perto de nós. Caem, não dizem nada e adormecem. Andávamos tão certinhos duma receita de felicidade obrigatória. Tínhamos Deus para os bons, e o demónio para os maus. A justiça lá se ia fazendo. O amor não era muito mas ia dando para os serviços mínimos. Paralelamente, as contas funcionavam e os políticos deliravam com os resultados. Mas veio de lá a bomba, carregada de mil sóis. E nem tivemos tempo de sermos heróis (Gedeão).
Ninguém me encomendou a elegia. Aproveito apenas para sublinhar a vulnerabilidade da nossa espécie. E sobretudo a incapacidade para vencermos com alguma glória os perigos de vivermos sós em multidão. Alguma filosofia recente asseverava que o pecado moderno era o magote. Na muitidão, berramos de felicidade e contagiamos a humana gente. A ausência dos centros comerciais provoca tantos danos afectivos quantos os estragos vitais do covid. E quem assim pensa, fala como se de uma citação bíblica se tratasse.
Não há felicidades gerais. Há momentos, frágeis momentos, de elaboração pessoal, que exigem muita aplicação de quem os espera. Os outros não são o inferno mas sem individualidade também não são o céu. Para saber quem eu sou, não dispenso os outros. Para saber quem são os outros, não me podem ignorar. Relação dialética ontológica: nem eu sem os outros, nem os outros sem mim.