2013-04-12
A. Martins Ribeiro - Terras de Valdevez
Amigos e companheiros:
passadas estas festividades da Páscoa, com os seus petiscos e libações, verifico que o nosso site tem andado muito chocho e começa agora a dar um arzinho da sua graça com as intervenções do Gaudêncio e as suas andorinhas chilreantes (ao tempo que eu já não as vejo!) e com o belo poema do Ismael Vigário. De resto, o amigo Peinado escafedeu-se, o Arsénio idem, o Aventino nem procurado com uma lupa, o Alexandre, cadé ele? E tantos outros, Senhor, onde param? Como sabeis, antes dos computadores existiam as máquinas de escrever: eu tive algumas, bem giras e que adorei muito. Estava eu a mexer aqui nos meus alfarrábios e dei com um trecho de elogio a uma delas. Poder-se-ia adaptar agora aos computadores mas, sendo estes muito mais prosaicos, prefiro mantê-lo na sua originalidade, dedicado àquelas máquinas cujo romantismo não sofre contestação. Por isso e porque me provocastes, vou castigar-vos com ele:
Á MINHA MÁQUINA
Quanto suspirei por te possuir, quanto desejei ser teu dono, minha querida máquina! E, para isso, teria sido mesmo capaz de dar por ti todo o ouro deste mundo, toda a fortuna que tivesse! Querendo eu ser como os grandes homens, sabia que só contigo o poderia conseguir e, na verdade, agora que já és minha, sinto-me um homem importante, um cidadão presumido, uma pessoa ditosa e feliz!
Amei na vida, minha máquina, amei pessoas com coração, mas para que tu saibas, de que me serviu amar tais criaturas se me não trouxeram contentamento algum com o seu amor, antes fizeram de mim um ser rebelde, irritadiço e triste!?
Percebi, então, que só havia dois caminhos a seguir, minha amada máquina; ou repudiar o amor de pessoas vivas e conscientes, ou amar seres irracionais e sem coração, como tu.
Mas ... que digo eu? Tu não tens coração? Como sou injusto.
Não serás tu muito mais adorável e terna sem coração que todas essas a quem amei e que, em paga, me escarneceram e desprezaram porque apenas tinham almas penadas e vazias?
És, com certeza.
Não terás tu, sem coração, o fascínio e o sortilégio duma ofuscante beleza?
Tens, tens, certamente.
Não provocarás tu, sem coração, a intensa paixão que se dedica a um ente adorado?
É verdade que sim.
Pois então, como te disse, ainda hesitei entre o deixar de ter consciência e o de me dedicar a objectos inertes e parados. Mas alienar a minha consciência e afogar a nobreza dos sentimentos da minha alma, não cabia na minha maneira de ser e, por isso, decidi entregar-te toda a minha dedicação e afecto.
E é o que faço nesta hora, escreve isso, minha amiga máquina, pois to estou a dar neste sagrado momento em que só Deus nos vê; a mim a dedilhar-te com cuidado e carinho para não te ferir e tu, mesmo assim, desculpa e perdoa se te carrego mais rudemente que o meu costume, mas acredita que é sem intenção de te magoar; e a ti que cantas e matraqueias suavemente, sendo que o teu matraquear é, para mim, bem mais melodioso e jucundo do que as palavras de amor que um dia escutei dos lábios da minha amada pois, assim como foram bem deliciosas nesses momentos por as acreditar sinceras, mais cruéis se tornam agora ao saber quão hipócritas e mentirosas elas foram, quanta traição escondiam.
Deixei de contemplar os seus lindos olhos, mas não terás tu o brilho deles? Não terás a candura do seu rosto, a ternura e poesia dos seus lábios? Deixei de estreitar as suas deliciosas e aveludadas mãos, mas não serão para mim muito mais macias e delicadas as tuas teclas pretas com os caracteres embutidos em branco?
Pretas, disse pretas? É verdade, quanto eu gosto da cor preta; porque nasci para ter a alma sempre imbuída de certa e indefinível tristeza, sempre vestida de saudade. É meu feitio, bem o sei e, mesmo para que entendas, minha adorada máquina, o meu talismã, por força do destino, é a cor negra, o precioso ónix. Por via disso, ainda me agradas mais e mais te quero.
Deixei de mirar o seu rosto e aquele seu sorriso que foi a minha perdição e tantas e tantas vezes me subjugou e aniquilou como um raio inefável e poderoso, mas tu não terás também o encanto desse rosto e desse sorriso?
Oh! Se tens! Claro que tens!
Contigo abarco e domino o Universo e a Vida, pois tu podes materializar os meus pensamentos e os meus sonhos. Os dois possuímos um verdadeiro e incomensurável poder; assim tenhamos capacidade e sensatez para o exercer com equidade e justiça. Tu podes fazer com que eu crie uma mulher, a mais linda mulher que existe no mundo e que será só minha, conforme o meu gosto e o meu ideal. Eu, contigo, posso imaginar e conceber uns olhos, os mais lindos olhos de quantos existem e dão brilho e prazer aos homens, olhos languidescentes e de estranho poder de doçura, olhos que poderão ser a minha perdição ou a minha fortaleza. Tu, enfim, podes pôr diante de mim uma mulher conforme me der na vontade e na fantasia, ou nua ou vestida de princesa, mais que de princesa de rainha, mais que de rainha, de deusa; tu podes ser o chicote para fustigar muitas maldades e hipocrisias, para verberar muita cobardia e traições, tu poderás trazer para a luz do dia a podridão de muitos corações e de muitas almas denegridas, tu poderás ser o azorrague para zurzir muitas petulâncias e infâmias e, por certo, também o louvor de muitas virtudes e actos magnificentes, (o que não é lá muito provável, desde já te digo), e serás quiçá a minha defesa contra as iras injuriosas dos homens, contra as ignominiosas calúnias dos invejosos, contra a injustiça dos fanáticos. Ah! E espero que sejas também a minha glória um dia quando, depois de ter fruído a tua inesquecível companhia, vá repousar eternamente no sono imperturbável da morte.
E depois? Quero que me acompanhes pelo rasto cintilante do pó das estrelas, porque quem foi fiel por toda a vida, igualmente o será para além dessa hora fatal, quem me acompanhou com tanta dedicação e préstimo durante a minha passagem pela existência, também merecerá figurar no acompanhamento íntimo da saudade.
Assim, minha querida e amada máquina, eu te dou e entrego toda a minha estima e devoção. Crê que te adoro e te amo muito, a ti posso confessá-lo sem receio de vir a ser atraiçoado.
Foste muito cara para as minhas posses mas, já o disse, haveria de dar por ti todo o ouro do mundo e, acredita, que se o houvera dado não te cederia depois, tem disso a certeza, por todos os tesouros ou pedrarias que alguma vez pudessem ter existido.
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Arcos, Janeiro de 1969