2013-06-16
alexandre gonçalves - palmela
PAISAGENS DE SETEMBRO
Finalmente! Que os deuses sejam louvados e agraciados com as mais luminosas medalhas de mérito. Os ARES vêm de nordeste e convocam-nos para a vindima. Os frutos suspendem-se ao longe, carregados de ouro, de alabastro e de púrpura. É a idade certa para os colher. Já não podemos fazer poemas de amor, sob pena de sermos asfixiados em público. Noutros tempos, tudo nos era consentido. Agora esperam de nós uma seriedade madura, isto é, inclinada, rente ao solo, como é próprio dos guerreiros aposentados. Em rigor, a mudança sazonal é cheia de oportunidade. No inverno, um encontro que não tenha em fundo qualquer aconchego, ou sugestão de fogo, é obviamente proibitivo. Na primavera, tínhamos um abril encharcado pela chuva, um maio e um junho a distribuir morangos e cerejas. Mas estava para trás uma páscoa cheia de coehos ameaçadores, sempre a passar rentes ao quintal onde moramos. Não houve legume ou erva que eles não rapassem...
Do verão nem se fale, desses dias de fuga e de ausência. E de tristezas discretas, como quem esconde uma dor pelos danos causados pela vida. Venha setembro. Vamos vindimar setembro. E não apenas uvas ou figos. É o que a fala nos trouxer e a memória confirmar. Setembro traz-me sempre a primeira entrada pelos portões ferrugentos, sugerindo metálicas mandíbulas de arcaicos animais. Ou o regresso dos muitos caminhos já andados. Em vila nova, setembro traz de longe a recatada Madalena, onde "nem a casta Susana tomaria banho", tanto era o pudor que nos envolvia o desejo. A poente, era um mar atlântico, de louvar a Deus, pedregoso e eremita. A nascente, era um obscuro canavial, onde a imaginação, destravada de hormonas e medos, inventava crimes e prevaricações. Não sendo já da terra, mas não pertencendo ainda às colinas do altíssimo, eram aí os banhos em agosto e setembro, num sossego idílico, entregues a jogos múltiplos, a leituras piedosas e edificantes. Mas isso não garantia um regresso à virtude. Os educadores sabiam que o mundo era um antro contaminador. Era urgente uma purga, uma desinfecção geral. Era imperioso afastar das mentes quaisquer gestos, desejos ou actos que sobrassem das escassas férias familiares. A receita, inspiradas em teorias de terror psicológico, eram três dias de retiro. Isto é, um caldo intragável em que se misturam, por um lado, o último rosto que olhou para nós, os joelhos que se cruzaram e descruzaram sem a nossa cumplicidade, a volumetria que irrompe súbita pelos sentidos. Por outro, um pregador medieval, viajado por toda a história da Igreja, especialista em teorias de inferno e de culpa. Tudo terá de acabar no perverso salmo cinquenta, exactamente como Gregorio Allegri o musicou e gerações sucessivas de corais o interpretaram. E mais não se diz sobre isto, para não suscitar a justa fúria de quem já esqueceu. O esquecimento é muitas vezes um grande acto de inocência.
Mas setembro desagua agora para DOURO. Desagua agora na nossa idade verdadeira. Sabemos agora de que é feita a viagem que perdura. Os socalcos são os sucessivos patamares. A cor púrpura das uvas e do sangue que as alimenta é o que se colhe das árduas sementeiras. O rio que rasga o ventre das montanhas é aquele que ao longo dos dias abriu caminhos de passagem. Esta viagem é autobiográfica. Ao longo dela, como num filme de intimidades, poder-se-á ver o percurso já feito e avaliar o que se escolheu, o que se recusou. E mais que tudo, a água que se foi acrescentando ao caudal deste rio, que sendo ibérico é do mundo.
Deixa a tua vinha em paz. Deixa os teus cuidados entregues ao Sr. Gaspar. Prepara-te, porque este verão não é teu. É desse pesadelo, cujos passos de agonia vão cirandar por toda a parte. E de outros bonecos de corda, na tentativa verbal de pagarem o que devem. Portanto, não tens desculpas. Precisas tanto de nós quanto nós de ti. De resto, não te esqueças de que até agora só não te roubaram o tempo. E estamos em crer que até te deve sobrar. Guarda-o para setembro. Os ARES de nordeste vão ser um anti-oxidante vitalício!