2013-08-12
Alexandre Gonçalves - Palmela
ELEGIA DE VERÃO
Depois de ler a doçura quase mel, quase frutos vermelhos de época, que o Aventino semeou por estes campos que o verão devora, não fui capaz de ver e de calar. Eu bebia esse norte ou esse sul, esse mar belo ou monstruoso, com a devoção de um aprendiz de feiticeiro, tão enfeitiçado me senti nessa prosa envolvente e feminina, atravessada por desejos em vias de extinção. Há nas suas sugestões um programa inteiro para fazer da terra um jardim de sentidos. Eu bebia, eu comia, eu corria, eu até levaria o Álvaro de Campos para mudar a vida. Mas eu estou sentado no cimo do morro mais azul da ibéria. Isto é, no sul que abre este mar português mítico, sem outras ondas que as do leite num púcaro de pastor. Olho do alto da idade e como quem se lança no abismo desço pelos dias dos verões antigos. E comovo-me. Este mar do sul (aí no pardo norte cristão vocês não sabem o que é ser mouro do sul) é a pureza da luz, a brancura imaculada dum corpo que se despe, um olhar estonteante que nos encandeia. O céu e o mar do sul fundem-se na mesma tela, com pessoas vagarosas lá dentro, com memórias de infinitos matizes. Num lugar assim, ora muito alto, ora coberto duma espuma lenta de perfumes e desejos, não se pode nem trabalhar, nem sofrer, nem fazer qualquer coisa pela humanidade. Quando muito, apetece dissolver-se no elemento aquático, para não ter de aturar os prazeres duma democracia tão letal como esta.
Apesar de tudo, esse norte-sul de que fala o Aventino é uma alternativa brilhante, para partir, para regressar, para esvaziar a mala e retomar a malha densa dos dias trabalhosos. Como o tempo já vai sendo muito, eu não resisti à melancolia dum sul que tudo nos promete e tudo nos vai dando, mas por escassos intervalos de esperança. Aí nasceram versos elegíacos, para dizer que o verão se perdeu sem culpa formada. E que as doces lembranças fazem de setembro e outubro um álbum espiritual, para abrir em dias de chuva ou de frio, com música de piano ao longe.
Estou sentado num lugar azul,
tão alto que se funde com o céu:
daqui te falo, meu amor do sul,
do pardo mar que nos aconteceu.
Falo deste verão que está passando,
tão lento, tão inútil, tão devasso.
Procuro desde aqui o vento brando
que em nós morava dentro dum abraço.
Eu sei, não nos amámos nessa espuma,
que se desfez na areia num segundo.
Mas sabes bem que havia aquela duna
que em segredo sabia o que era o mundo.
Perdemo-nos nas ondas do verão,
num tempo tão azul como este céu.
Eu segurei-te o corpo pela mão,
mas nem sequer sabia se era teu.
Passou agosto, não passou setembro.
Em outubro fizemos um retrato.
Do que passou depois já não me lembro,
tudo jaz num silêncio de recato.
Estou num lugar alto, muito alto,
sentado em cima desse tempo azul:
ainda trago o corpo em sobressalto,
das dunas destruídas neste sul.
Que mar foi este que assim nos tornou,
tão frágeis, tão chorosos e tão sós?
Qual de nós neste mar se equivocou
e tristes nos deixou dentro de nós?
Estou sentado sobre o tempo breve.
Olho ao longe um azul infinito.
Ainda se respira um vento leve,
mas esta paisagem é um grito.