2013-03-14
alexandre gonçalves - palmela
ÀGUAS DE MARÇO
Aqui, no silêncio conventual de Palmela, ouve-se chuva continuamente. Doce, melancólica e tão insinuante que apetece ficar. Lembra-me vila nova e aquela melodia triste, quase litúrgica, quase gregoriana, que descia no bosque a partir de setembro e durava até princípios de maio. À época eu não o sabia. Mas agora já descobri. A virgem terra, na sua feminilidade matricial, precisa de nove meses para dar à luz a mais bela de todas as mulheres. O seu nome é PRIMAVERA. O rosto é uma luz coada, como se fosse poeira de sol. Os olhos são a água mais pura das montanhas e apetece beber por eles a vida, o desejo, o amor. Os cabelos têm o ouro dos fins de tarde, às mãos dando um suave toque de seda natural. E o corpo, de tão ondulado e vigoroso, lembra a mãe que o gerou. Na roupa, tudo lhe fica bem, especialmente a feroz brancura dos seus dentes. Ou as infinitas flores que prende aos seus cabelos.
Eu não falo da natureza. Falo da infinita perfeição da mulher. Só um território assim podia ser fecundado, lavrado, semeado. E colhido no verão, como o trigo. Em vila nova, esse ser cobiçado por todos os deuses do Olimpo e até pelo cristianíssimo Espírito Santo, esse ser foi sempre tão proibido como as suculentas maçãs de Eva. Se é verdade que Adão foi um rude ensaio do criador, então percebe-se melhor a obra futura, que foi chegando até aos nossos dias. Ela não é perfeita, ela é a perfeição. Adão é uma tábua de engomar, embora ele nunca tenha engomado coisa nenhuma. Um bocado de madeira mal aparada, sem complexidade nem sombras. O que é está à vista. Não sabe chorar, não sabe perder a cabeça, não sabe fazer um filho. E às vezes nem banho toma, porque ouviu dizer que um homem pode cheirar a cavalo, sem que isso lhe traga nefastas consequências. Etc. Já ela é uma síntese do universo. É como as estrelas. Em rigor, que é que se sabe delas, das estrelas, claro, se algumas estão a chegar agora ao olhar dos mortais? E quando um escriba se queixa amargamente da nossa insensibilidade a tudo quanto é feminino, será que tem razão? Não concordo nem sustento o seu contrário. Mas alerto para uma compreensão mais alargada e mais atenta do problema. Sendo Eva mais abrangente que as escrituras, sendo mais transcendente que os mistérios divinos, faz algum sentido que a proibissem numa época de aprendizagem como foi a de vila nova? Eva aprende-se como um texto sagrado. É preciso em cada tempo aprender a lê-lo duma forma continuada e não aos saltos. Como na matemática. Numa sucessão contínua e gradual de conteúdos. Como quem sobe uma escada. Não se podem saltar degraus. Aí está. O citado escriba tinha razão. Não acertamos com o lado feminino da existência. Ensinaram-nos as equações todas de atacado e fora de idade. Agora é aguentar, como diz o outro. Quem é que de nós teve a sorte de pegar na mão dela, metê-la num bolso e ir de manhã para o liceu, numa paisagem de neve? Eu não, infelizmente. Mas sei quem o fez e o lembre com doçura, nos dias tristes.
É esta a minha tentativa de reparar a injustiça da omissão. Ninguém celebrou aqui o dia da Mulher, 8 de Março. Como ela é irmã gémea da primavera, e como tudo isto rima com alegria, rosas, chuva e abril, sugeriu-se entre dois dedos luminosos de fala uma data para essa celebração. Março não pode ser, por ser curto este ano. Então pensou-se na primeira semana do mês que vem. O convite é alargado a toda a gente, particularmente às SENHORAS. Em breve se darão mais pormenores. Só para abrir outras sugestões, estamos a pensar no Segundo Círculo do Fogo, num ameno fim de tarde, até que as estrelas e a lua se sentem connosco na mesa de abril.