2013-09-24
alexandre gonçalves - palmela
ROTA D(E)OURO II: S. Leonardo da Galafura
Dez dias depois, pedi aos olhos que dessem a mão às palavras. De tão frágeis, comovem-se e alteram-se. Coram perante o esplendor da paisagem e recolhem-se no silêncio, esperando que o tempo abrande a intensidade da luz e da cor. Como quem se afasta um pouco , só para ver melhor. Para focar melhor a câmara. Para filtrar um olhar, um rosto, um rio, ou um simples ponto de exclamação. As doces palavras são tímidas, donzelas de iniciação, apetecíveis promessas de futuro. Pouco a pouco, aqui e além, começam a aflorar na solidão do espaço branco. Só então vale a pena tentá-las, provocá-las e pedir-lhes que digam, por forma a evitarem gritinhos e leviandades.
Comecemos pelo promontório de S. Leonardo. Os ouvidos estão carregados de torgas, pequenos arbustos que se infiltram pelas costuras das pedras. Agarram-se ao áspero chão, formando grossas raízes, como que para resistir à vertigem do rio. A mão feminina que passa não resiste ao gesto de cortar um pequeno ramo, para mostrar a respectiva identidade. Os ouvidos atentos podem agora entender quem esteve ali, quem ali gravou em azulejo textos de pedra, de água e vinhedos. Textos de eternidade, porque foram colhidos em deslumbramento. Estamos a ver o DOURO pelo olhar de espanto de Miguel Torga. E podemos agora compreender donde lhe vem o nome. Miguel, porque é ibérico e porque dos seus textos se vê o mundo todo. Torga, porque tem raízes austeras, que perfuram a terra que habita. Árvore centenária, de flancos expostos aos ventos, que nenhum vento derruba. Numa imanência telúrica, de identidade e diferença, onde radica todo o sentido da existência.
Este Douro é ouro puro. Estas pedras são tão líquidas como as águas azuis, que lá nos fundos das montanhas rebrilham de frescura e fecundidade por estas encostas acima. E nos socalcos, penteados em cordão, as uvas desfazem-se em sangue, amorosamente recolhido em taças sumptuosas, que o grande rio leva à mesa dos príncipes. E esta rota de setembro abre-nos o livro da idade onde em cada página se lê: VIVER. Não há outra saída airosa. Viver até ao limite das forças, dando a cada célula em pânico a ilusão da esperança. Existir é um jogo. Alguns ganham frequentemente, e são felizes. Outros perdem sistematicamente, e são infelizes. Mas, a ganhar ou a perder, nenhum bem se compara ao de acordar de manhã e aninhar os olhos na paisagem do mundo (M. Torga, Diário XIV). Do mundo, que é este reino terreno, até onde a palavra der. Até onde as forças o consentirem. Onde não há lugar para a resignação, para a lamúria, para a postumidade. É proibido morrer e ficar depois a contemplar-se piedosamente, como num velório. Dói ser homem mas não se é homem sem luta. Estes vinhedos, que trepam pelo tempo acima, que documentam a guerra civil entre o homem e a natureza, até chegar a esta polifonia de ritmos, de frutos e de cores, mostram como se deve construir o sentido. Não -nos foi dado. É-nos exigido que o construamos. O homem não nasce feito, tem que se fazer. Como se faz uma vinha. Como se constrói uma casa. Como quem tem pressa de viver, para atingir a lentidão da sabedoria.
Acabemos pelo barco de pedra de S. Leonardo. Entremos no esplendor líquido das águas. Torga é o homem do leme. Vamos descer o rio até onde a vida nos levar. O outono chegou às cidades. Saibamos que tudo está a prazo e que só um bom combate nos permite acordar em outubro para a infinita beleza do mundo.