2013-10-19
Alexandre Pinto - Palmela
O CÍRCULO DO FOGO
Pois é, meu caro Vieira. A tua observação é mesmo dum profissional atento e meticuloso. E justo. As ervas do quintal dão muito trabalho, mesmo para aqueles que o não têm. Sem o teu serviço de continuidade, a mudez geral bradaria aos céus.
Os anos pesam mais do que deviam. E a escrita é uma actividade de risco. Mas a ironia não modifica os hábitos. E são de mais os perigos da existência. Às vezes, ocorre-me a ideia de que se morre de sede rente a uma fonte que não se vê, só porque aborrece trocar as minudências domésticas pela paisagem que está do outro lado da janela. Como se alguém pudesse encontrar conforto na rotina de mastigar tédios e cansaços, num ócio pardacento, sem raiva e sem urgências. Ler, escrever, abanar a cabeça e dizer não, eis um programa de tarefas infindáveis, que a sabedoria da idade impõe aos dias que passam. O grego fez do ócio a ocupação por excelência, fundando a civilização e a cultura, a cidade e a democracia, a liberdade e a ética da participação. As soluções clássicas caíram a pique. Hoje já não nos convencem nem a propalada teoria da concorrência nem o messianismo judaico-cristão. Uma prega a esquizofrenia social, o outro o angelismo da imaterialidade, como se a vida não fosse terrena. E em época de tanta aflição, dá-lhe a febre de fazer santos de atacado. O Céu está abarrotado de criaturas protectoras. Na linha de montagem, outras se estão a produzir, em jeito de aviário. Como se o mundo estivesse na iminência de se extinguir, caso não crescesse a população celestial. Este cristianismo, com Francisco ou sem ele, lembra os jogadores de xadrez, de Ricardo Reis: " Ardiam casas, saqueadas eram/As arcas e as paredes,/Violadas, as mulheres eram postas/Contra os muros caídos,/Traspassadas de lanças, as crianças/Eram sangue nas ruas.../Mas onde estavam, perto da cidade,/E longe do seu ruído,/Os jogadores de xadrez jogavam/O jogo de xadrez." A santaria distrai e consola, mas ignora o mundo louco deste incipiente século XXI. E este pobre país traído, enganado de lado, de frente e de trás, é uma pequena amostra estatística, que a concorrência reduziu a zeros. Quem transformou os antigos anciãos, sábios e dados ao pensamento, cheios ainda duma ternura adiada, quem os pôs no lixo, nos copos de três, nos bancos das esquinas e jardins, nos corredores dos hospitais? Podemos ser cães mudos? Pedimos a Fátima que salve Portugal? Será que não lemos, nem analisamos, nem sequer cultivamos a suspeita? Ou será que já não amamos cousa nenhuma?
Chamo a isto o círculo do fogo. No dia 8 de Novembro (o sábado que precede o S. Martinho), era óptimo que a formosa Palmela, mas não segura, ardesse aqui no chamado paraíso do SUL. O convite é extensivo a todo o território, especialmente ao elemento feminino, por forma a descontaminar a mente formatada por um longo exercício de crucificação. O desenho já está feito, a lenha está pronta, as castanhas já andam por aí, e o vinho já corre por aqui. Palmela, a última ilha de que a grande cidade ainda não se apoderou, é nesta altura quase líquida, tanta é a protecção de Baco aos suaves prazeres da terra. Espalhem a notícia, sigam os bons exemplos e evitem os maus. Tragam o que lhes der na gana criativa, menos o que os deuses pagãos dão em abundância. A partir das dez horas, os portões estarão escancarados. Não há controle de ingressos. Após o magusto beirão, a fogueira desenvolve-se naturalmente em várias frentes. O lume cresce ao ritmo da fala. E a fala apura-se, iluminada pelo espírito da hora, em prestações individuais. Duas coisas serão tidas como indiscretas: repetir ou citar alguma intervenção anterior, bem como optar por qualquer forma de silêncio. Cada falante disporá de um tempo obrigatório entre cinco e quinze minutos, não menos nem mais. Por fim, sem hora marcada, o moderador fará a última intervenção e encerrará o encontro, assustando a noite com o "BIBAT". Quaisquer outras informações estarão disponíveis pelos meios usuais.
Para concluir, creio que o site já passou por mores dificuldades. Reconheço indiscutivelmente a grande e oportuníssima intervenção do Ismael, cuja prosa contundente e austera quase assusta a geral placidez dos presumíveis leitores. Faço-te daqui um repto: vem até aqui ao sul, onde, num esforço colectivo, derrubaremos este governo, e outros semelhantes que se espalhem nas adjacências, bem como a humanidade que os gerou no seu pérfido ventre. Traz a cábula e senta-te à mesa, para celebrarmos a festa de estarmos vivos. Se falamos, se escrevemos, se rimos, e produzimos vãos pensamentos, é porque estamos muito vivos e nos recomendamos. As belas Senhoras que se apressem, porque nós não chegamos para as encomendas, mesmo que a cada um caibam sete e meia. Chamo ainda a atenção para o breve comentário do Rosa Gaudêncio. A concisão levada à máxima ganância. Isso estimula e mostra que há leitores.
Acabo com raios e coriscos, feitos à pressa, porque a bela Palmela está sob uma trovoada histórica. Lá nas regiões superiores, há fúrias que nunca por aqui se viram. A luz foi-se e as últimas palavras são escritas à vela e à pilha.