2013-07-05
alexandre gonçalves - palmela
ÁGUA TODO O ANO
Desde há muito tempo que atravesso o Alentejo no verão. E na planície em fogo, tropeço inevitavelmente neste grito irónico, ÁGUA TODO O ANO, que dá nome a uma aldeia que morre de sede. Antigamente, quando eu respirava futuro por todos os poros, chegava ali num volkswagen, eroticamente redondo, que me acompanhou cerca de vinte anos. Não morreu em combate. Larguei-o de vez, não por incompatibidade de feitios, mas porque a sua manutenção me subvertia o orçamento. Só então percebi que o meu escasso sucesso amoroso se devia mais a ele do que ao dono.
Quando chega o verão, vêm-me à boca, cheia de sede, essas duas trivilialidades, o carro e a aldeia. Como se a paisagem e a travessia fossem elas mesmas feitas de água pura, a brotar da infância. Fotografei a placa de muitos ângulos, de muitas cores, de muitas intenções. Há-de ser o título dum livro, que hei-de escrever. Tenciono cumprir a promessa na eternidade. Aí não me vão faltar nem tempo nem leitores. Mas a palavra água não a largo, não a troco, nem a adio. O grego e o romano, e muitos portugueses de excelente extracção, preferiam o vinho. Mas aquela Madalena bíblica só tinha água para dar. E foi o que Jesus Cristo lhe pediu. Sem desprimor para os apóstolos das confrarias vínicas, nem quaisquer propósitos de imitar ninguém, era isso que eu pediria a uma jovem morena, em cujos suados braços deslizasse uma gota de água.
Falo do verão que agora começou. Já não temos nada que alguém veja. Já não temos nada que alguém deseje. Nas praias, os nossos corpos só são toleráveis se discretamente nos embrulharmos na areia. E fizermos do silêncio a nossa sábia presença. Mas nós pagamos na mesma moeda. Retiramo-nos para a esplanada, lemos o jornal e aguardamos que venha setembro com urgência. Até lá, despejamos mais algumas cervejas, dizemos banalidades e ocultamos os desejos na memória. O pior é que a memória não dorme. Sugere uma quinta protegida por cães de guarda. De noite, ou num recanto de arbustos, ou numa esquina de café, qualquer ruído acorda os sentidos passados, como rafeiros ferozes. Não é o ladrar que nos incomoda. É antes o assalto súbito, os dentes afiados, e a tentativa da dentada fortuita. É antes uma sede que perdura. Uma tarde em vão parada na consciência. Um alentejo sem fim, onde a vida arde sem razões no horizonte. Antigamente, quando respirávamos futuro, um carro mais velho do que nós era mais que bastante para acreditarmos num amor cristalino, a brotar da fenda duma pedra ou dum tufo de juncos. Hoje, inclinados para o areal, esperamos que chegue setembro.