2014-01-16
alexandre gonçalves - palmela
LEITÃO DE NEGRAIS
A história começa assim: "era uma vez um menino com dez anos...." O menino cresceu e espontaneamente começou a contar. Nasci numa aldeia que não tem geografia nem coordenadas. E é verdade, tenho dez anos, fiz a quarta classe e já tenho raiva. Herdei-a directamente de meu pai, que entendia o mundo com simplicidade e clareza. Andava eu brincando os meus tenros dias, quando caiu do céu um raio de luz. Vinda do céu, não era celestial. Sendo homem, não pertencia à espécie humana. Ficava a meio caminho desses extremos. Era o Pe. Teodoro, onde a bondade era superior à paisagem que eu habitava. Falou com meu pai e ambos improvisaram, com ingénua ternura, o meu futuro. Nessa altura eu ainda tinha muito, embora não soubesse qual fosse. No dia seguinte, já era outubro. As folhas dos carvalhos foram solidárias com a minha partida. O vento soprou-as ma minha direcção mais íntima e guardei-as como quem esconde um brinquedo proibido. O cavalo, o caminho de terra batida, treze quilómetros de estranha despedida. É uma cena fílmica, um tanto exagerada para o meu gosto. Meu pai à frente, eu atrás, sob um capote comprido e quente, e dos lados os alforges com as malas. É de madrugada, faz frio, faz escuro e eu penso. Meu pai é silêncio. Depois é a vila, é a vida , é a solidão e uma total ausências de palavras para me proteger. Nem o pai, nem a mãe, nem a irmã, nem a prima. Tenho dez anos, tenho frio, tenho medo. E uma infinita via férrea, apontada como um tiro de obus ao meu futuro.
A história come-se e bebe-se à medida que o leitão se expande sobre o sagrado lenho da memória. O falerno do sul ajuda a mastigar. O fogo destrói o frio que se agita no vento sobre os cedros. A chuva pousa com doçura na relva e nos arbustos. É janeiro, é o começo do mundo, é uma casa na pradaria. E uma voz que fala novo, que protesta contra a hora sinistra, que pergunta a Deus o que anda a fazer na terra dos homens. Que pergunta aos homens o que andam a fazer a si próprios, ignorando a impunidade, diabolizando os afectos, perversos predadores da própria espécie a que pertencem. Depois vem a sobremesa com o café. A sala está mais quente. Negrais traz um conforto sonoro aos sentidos. O fogo, irmão gémeo das pedras e das origens, cresce na lareira e apazigua o tempo. Já não temos pressa. Fala, meu amigo! Discorda com veemência! Repousa um pouco da caminhada. Ama se ainda fores capaz. E grita para as cidades que não estás disponível para abandonar a cena.