2014-09-05
Alexandre Gonçalves - Palmela
CARTA PÓSTUMA
Saudosa Helena de Tróia ou de Lisboa
Soube recentemente notícias a teu respeito. Nós tivemos em tempos uma suave amiga comum, cúmplice dos nossos segredos, que protegíamos de todos os olhares. Encontrei-a casualmente e nem foi preciso eu perguntar. Sei os pormenores e estou a lidar com eles como se duma ferida se tratasse. Eu já sabia que não havia outra metafísica diferente da que praticávamos. Pessoa e Sofia ensinaram-nos isso muito cedo. E por isso nós começámos a comer chocolates. Rebolávamos pela relva irresponsavelmente. Um dia beijámo-nos na via pública. O trânsito parou para nos ver e nos aplaudir. As buzinas fizeram um coro de ovação. Nós queríamos provocar. Queríamos dizer-lhes que eles estavam errados. Nós e todos os dessa geração íamos ser diferentes. E íamos transformar o mundo. Nem uma coisa nem outra. Fomos quem fomos, candeeiros de chama que um pouco de vento apagou. Para sempre.
Estou diante do teu carro partido. O mecânico adiantou outras informações. Não levavas cinto e entraste num caminho de terra batida, com o mesmo ritmo que trazias duma estrada de alcatrão. O teu seguro caducara dias antes. Não houve ninguém para pagar o reboque. Não foi um final brilhante. Nas minhas contas, deverás ter cinquenta e cinco anos. Procurei vestígios. Nem o mínimo sinal. Ao ver-me tão interessado, o mecânico perguntou-me se eu queria comprar os destroços, para aproveitamento de peças. Retirei-me com uma dor mortal não localizada. Quis chorar. Não consegui. Parei o meu carro em Monsanto, num miradouro que protegeu muitas vezes as nossas fugas. Acendi um disco e rodei para trás até onde pude.
Conhecemo-nos na faculdade. Tu a começar e eu a concluir. Foi um incêndio que lavrou os nossos corpos. Romeu e Julieta apagavam-se perante a nossa paixão. Começámos em novembro com a chuva. Molhávamos muitas vezes os cabelos e as roupas e não tínhamos frio. Amámo-nos no areal e morríamos devagar. Um dia esperavas por mim junto às escadas, ao primeiro tempo da manhã. Posso fazer-te uma proposta, perguntaste. Tu não querias aulas, eu muito menos. Entrámos no meu carro, atravessámos Lisboa e fomos parar à Baixa. O dinheiro não nos sobrava mas chegou para comprarmos umas gangas cada um. As tuas muito justas, a ponto de o teu corpo, também justíssimo, só entrar a custo e com ajudas exteriores. As minhas bamboleavam sem jeito nem rigor, em nome de um conforto não negociável. Assim armados, entrámos como dois barcos de pesca no mar baixinho do Estoril.
Estou a ficar perturbado. Com algum esforço, talvez consiga uma lágrima que seja. Bem falta me faz. Ouço Teodorakis, um músico desse tempo, que ainda me acompanha com frequência. Andámos nisto até ao verão. Em julho foste embora e só regressaste no fim de setembro. Escrevíamo-nos quase todos os dias. Numa carta mais ousada, dizias que eu era a tua vida. Ou eu ou nada. Antes freira que perder-me. Eu estava na idade de ser sério. Disse que sim, que o destino estava do nosso lado. E coisas assim. E disse-o convictamente. Chamaste-me então "Adérito querido".E acrescentavas: eu não gostava desse nome. Mas agora soa a música! Porque te amo na ausência, mais do que a mim própria. Durmo contigo, acordo contigo, e é contigo que vou aos campos..." Também eu odiava o meu nome. Mas nessa data mudei de opinião. E afiz-me à ideia de selar tanto amor com todas as promessas possíveis.
Porém, penso eu, tudo isto vai mudar. É bom de mais para ser verdadeiro. Aumento o volume de som e vou lá baixo aos seus vinte anos. Entro como hóspede e rapto o seu corpo indefeso. Os seus olhos amendoados. Vinte anos sóbrios, contidos, duros. Estremeço. Pressinto culpa, como quem tem entre mãos um tesouro e o esbanja sem disso se aperceber. Eu já fiz trinta. Já provei muitos frutos. Quem sou eu para me armar em Páris e levar par Tróia a bela Helena? No fim das férias uma carta. Anuncia o regresso e sublinha: "uma novidade. O meu ventre, que tu exaltas, anda a dilatar-se. E garanto que não é obra do Espírito Santo. Que fazemos?" Fiquei aterrado. Não era que eu recusasse fosse o que fosse. Era antes a inoportunidade da hora. Era a relação clandestina. Era uma família incapaz de compreender, incapaz de perdoar, incapaz de receber a notícia. Esperei por ela no Rossio e chovia. Abraçámo-os e chorámos. Então eu disse: não podemos. Insisti. Não podemos. Mas a última palavra é tua. Aceitarei a tua decisão. Mas ela não decidiu. Abandonou a faculdade e regressou à aldeia. Nem palavra vai para mim. Fiz tudo. A tudo respondeu com silêncio. Dois anos depois, tenho a primeira notícia. A Helena transferiu-se para Coimbra. O ventre dela, que era belíssimo, belíssimo continuou, agora a cargo de um doutor de leis, recrutado pela família. Após a conclusão do curso, o casal vem para Lisboa, ao cheiro da política. Ele chega a deputado e reforma-se muito cedo. Mas o tempo foi escasso para saborear o ócio. Foi dormir para o campo lá para o alto de S.joão. Nunca mais voltou. Helena ficou a chorá-lo por pouco mais do que seis meses. Mas quando capotou e se extraviou pelas estrelas, ninguém apareceu para a chorar. A não ser este coro grego que eu escuto, derramando finalmente lágrimas de fogo sobre este carro partido, sem seguro e sem dono.