2014-10-18
alexandre Gonçalves - palmela
IMPROPÉRIOS OUTONAIS
"Mas enfim, descansai, deponde a lança,
que o não ter feito nada também cansa".
(Autor Desconhecido)
No dia vinte de setembro, depois de trezentos e cinquenta quilómetros de alcatrão, houve vila nova. E houve abraços e frases previsíveis. O site dizia efusivamente: gostei muito. Parabéns aos organizadores! O miolo do encontro ficou de lado. Na assembleia, depois dos lugares comuns habituais, aprovou-se por maioria absoluta a obrigatoriedade de encontros como este de dois em dois anos. Não se definiu quem seriam os próximos mordomos a preparar o evento. Presumiu-se que seria a direcção, a quem caberia a tarefa de nomear os ditos. Até hoje, nenhuma direcção organizou encontros. Limitou-se a colaborar e a apoiar as iniciativas propostas, todas espontâneas, utópicas e generosas. Que aliás vêm sempre, com uma ou outra excepção, dos mesmos proponentes. A DIRECÇÃO nunca fez mais do que isso, nem penso que o devesse ter feito. Já não é de somenos o labor de continuidade e coesão que ela tem imprimido à associação. Não exijamos mais do que aquilo que pode e deve e tem dado, para sereno consumo de todos. Assim sendo, esta lei democrática é acrítica e precipitada. Além de gravemente perniciosa, porquanto tende a inibir fontes donde sempre jorrou energia voluntária, capaz de mobilizar de norte a sul as mais diversas sensibilidades. Como é que uma assembleia minoritária, que não representa mais do que um terço dos eleitores, impõe regras gerais obrigatórias, numa associação que apenas se justifica em nome de uma memória tão flutuante como afectiva? Que força tem essa determinação se emana, à pressa e de atacado, de um conjunto de sócios que não apresenta folha de serviço nem se compromete a fazê-lo em anos imediatos? Ou será que essa decisão se destina especificamente ao anel imediato adjacente a esse ventre imaculado, a que se dá o carinhoso nome de CASA-MÃE? E os mouros do sul, e os cristãos do nordeste, o que se faz com eles? Papam trezentos e tal quilómetros e respectivas derivações para um piquenique engraçado, e outras ameaças imponderáveis? Vêm depois os encartados da solidariedade a lamentar que é cada vez mais reduzida a afluência. Que é preciso atrair gente nova. Para quê, pergunta essa gente nova, para mais uma reza, para mais uma missa? Foi sublinhado por várias intervenções que o importante não é ser este ou aquele lugar. O que decide o espírito desta associação, como aliás em tudo o que é social, são as pessoas. Onde elas estiverem, aí estará a bondade de um encontro. Vila Nova não tem que ser um lugar privilegiado. Nem se sabe se alguma vez o foi. Ali o tempo continua a doer. A casa-mãe nem tem mãe nem é casa. É hoje um lugar triste, cheio de ausências, onde tudo foi morrendo. Passam aqui e além figuras medievais, metáforas duma antiga memória, onde cada um foi quem foi. E hoje já sabemos que todos fomos muito pouco. Foi lá que aprendemos a ler livros terrivelmente estranhos. Coisas misteriosas. Foi lá que ouvimos. Que obedecemos. Que fizemos um silêncio devastador. Ao terceiro dia tanto ressuscitou J.C. como descemos aos infernos. Não fomos anjos. Mas também não éramos demónios. Nem assassinos. Para quê tanto terror? Onde está a minha mãe?-perguntava um menino de onze anos, encostando-se a um chorão e chorando com ele a infância roubada. Onde está a rapariga de olhos amendoados, que veio comigo no comboio e me sorriu e me convidou a sair com ela na estação da Pampilhosa?- grita em segredo um outro, onde os dezoito anos espalham hormonas pelas noites fora. Vila Nova não é maternal, nem um lugar de regresso.
Contudo, isso não impede que se realizem lá encontros, desde que alguém assuma esse alto risco de os preparar e de os tornar merecedores de uma escolha atenta, com garantia de algum retorno. O mesmo se deve esperar de quaisquer outras opções. Com uma diferença: a repetição cansa o desejo. E as hipóteses diminuem. Gaia é um livro como As Glórias de Maria. Foi tão lido, tão ouvido, tão comentado, que se esgotou. É mais fácil motivar para o diferente do que para o mesmo. A mesmidade é uma doença da imaginação. Aguardemos o futuro e vejamos o que os arautos dessa pátria de regresso nos propõem, daqui a dois anos. E aguardemos também que esses mesmos, que defendem a alternância, metam as mãos na massa. Parem de sugerir horizontes maravilhosos. Não se cansem com tanta letra. Ponham-se a caminho de dois mil e quinze. Escolham! Evitem o remorso de ver fazer. Não fazer nada esgota o espírito e mata os sobreviventes. O outono ajuda a tomar decisões. A cidade começa em outubro. A terra aguarda o arado e prepara-se para ser fecundada. Avancem e comuniquem à geral. O território não é extenso mas, como se tem dito, é abundante em beleza, em gastronomia, em cultura, em tradições. De norte a sul, de leste a oeste, os AAARs têm o coração aberto a um bom convite.